Só agora tive tempo para registar algumas reflexões inspiradas pela leitura, no fim de Agosto, do n.º 59 da revista "Economia Pura", dedicado a várias questões relacionadas com a eficácia das "políticas monetárias". A revista, antes de mais, aparenta ser uma montra do establishment político-financeiro que nos (des)governa: os autores dos principais artigos deste número são quase todos funcionários do Banco de Portugal (ou do B.C.E.) e não é exagero afirmar que os que o não são afinam pelo mesmo diapasão – o da crença na estabilidade dos preços como objectivo sacrossanto da acção das autoridades monetárias.
Bernardino Adão, Nuno Alves e Isabel Correia (Banco de Portugal), sem porem em causa uma baixa taxa de inflação (como os outros, julgam 1 a 3% uma margem necessária para se viver algures entre a inflação e a deflação, evitando-as), propõem a definição prévia por períodos da taxa de juro pelo banco central, de modo a evitar-se a incerteza que leva, segundo eles, os agentes económicos a esperarem determinadas taxas que incorporam mecanicamente na gestão e preços que praticam, contribuindo para fazer disparar a inflação; convencidos que a autoridade monetária dificilmente sabe ou pode evitar este efeito de "propagação à inflação", os três autores julgam, pois, que bastaria erradicar a incerteza pelo referido anúncio prévio – o que se pergunta, porém, é o que aconteceria em cada fim desse (pequeno) período e se as transições de definição para definição não introduziriam as mesmas incerteza e propagação que o esquema pretende evitar (até porque a rigidez resultante de períodos muito longos dificilmente seria aceitável para as autoridades monetárias e políticas). O que é curioso aqui é que nestes autores está implícito o reconhecimento da instabilidade gerada pelos bancos centrais e pela gestão que fazem mesmo das "pequenas taxas de inflação" que agora praticam e que são suficientes para se repercutirem permanentemente e com efeitos contra-producentes nos comportamentos dos agentes económicos ao tentarem antecipar e prevenir as escolhas discricionárias da autoridade monetária; o esquema dos autores não passa de uma fuga ao necessário reconhecimento de que, com papel-moeda, só um não-crescimento da massa monetária, acompanhada pelo fim da função de lender of last resort do banco central, garantiria a estabilidade almejada.
Por seu lado, Vítor Gaspar (B.C.E.) lembra que em Outubro de 1998 o B.C.E. definiu estabilidade de preços como «um aumento anual de preços inferior a 2% de acordo com o Índice Harmonizado de Preços no Consumidor» e mostra também, num gráfico construído com dados do Eurostat, que entre Julho de 2000 e Abril de 2003 a inflação na zona euro esteve praticamente sempre acima dos 2% (com vários passeios pelos 2,5% e um pico de 3% em 2001); mesmo assim, o autor julga, nas suas palavras, que o B.C.E. «conseguiu estabelecer e manter um elevado grau de credibilidade relativamente à sua capacidade e empenhamento em manter a estabilidade de preços, numa perspectiva de médio prazo» (p. 28). Ora, se no critério do próprio B.C.E., a estabilidade de preços é uma taxa de inflação inferior a 2% e essa taxa variou entre 2 e 3% desde 2000, parece obvio que a única conclusão possível é que o B.C.E. falhou o seu principal objectivo (números são números e a auto-indulgência que nos desagrada a todos é insuportável num burocrata).
Sobre a deflação como um mal a evitar – assunto que Gaspar também aflora no mesmo tom – debruça-se Cristina Casalinho (B.P.I.) que, sem papas na língua, conclui que «no limiar das taxas de juro nulas, pode impor-se o recurso a instrumentos "não ortodoxos", designadamente a monetarização do défice público» (p. 38), uma medida que a autora inscreve no leque de "políticas monetárias preventivas agressivas" que aconselha às autoridades de serviço. Ou seja, em nome do combate à deflação, segue a autora a velha e desastrosa receita dos defensores da "estabilidade de preços" de inflacionar o stock monetário, reduzindo forçosamente o poder aquisitivo das unidades monetárias em circulação (incluindo, note-se, as detidas pelos depositantes do B.P.I., assim bem defendidos pela directora do gabinete de estudos do banco a que confiam as suas poupanças) – porque razão é a deflação tão má é coisa que não se percebe do texto desta autora, a qual até chega a reconhecer que os consumidores com ela ganham... Parece que é a produção de bens e serviços que, ao ter de baixar preços ao consumidor, perde rendimento e pode ter de despedir gente – mas, ó sra. economista, as empresas também são consumidoras de bens e serviços que adquiririam igualmente a preços mais reduzidos e que logicamente (e em geral) lhes permitiria reduzir custos e despesa sem que a redução de preços ao consumidor as fizesse perder por aí além de rendimento. Quando se olha para a realidade como a sra. Casalinho só se pode concluir, como ela conclui, que o crescimento quase zero é o futuro inevitável (no que ela se engana, porém, é que isso seria acompanhado por baixas taxas de inflação mesmo com imprudentes monetarizações do défice que ousa propor – é que a despesa pública continua a crescer e não se vê a que métodos "ortodoxos" e não-inflacionistas recorrerão os políticos para alimentar essa despesa num cenário de quase estagnação do crescimento das economias). Se eu tivesse mais dinheiro ou fosse mais generoso, tentaria arranjar umas cópias de "Monetary Theory and the Trade Cycle" (Londres: Jonathan Cape, 1933), de Friedrich A. Hayek, para oferecer a estes colaboradores estabilizadores-desestabilizadores da "Economia Pura".
[Post-scriptum: Veja-se o gráfico bem revelador da incapacidade da zona euro de "descolar", no Economist de hoje; os Estados Unidos, apesar da propensão despesista após o "11 de Setembro", mantiveram sempre um crescimento de 2 a 3% (bem revelador da capacidade do seu mercado, mais flexível e menos esmagado por impostos, de suportar e superar o embate do crescimento da despesa pública), enquanto a zona euro, mesmo sem acidentes de percurso como os dos norte-americanos, ronda sempre os 0%. Quando até o Japão recupera de uma década de estagnação – provavelmente não tanto por ter liquidado os erros de investimento das décadas de 80 e 90 (que continuaram a receber taxas de juro nulas e empurrões de "incentivos ao consumo"), mas por uma parte do mercado ter enfim redireccionado investimentos e conseguido captar parte da liquidez retraída e da poupança das famílias – salta à vista o peso morto em que se tornou a "economia europeia", sempre numa linha recta atraída pelo 0, a que agora se parece estar a colar, ficando madura para as medidas anti-deflacionistas tipo Cristina Casalinho que atiraram o Japão para o buraco há anos atrás...]
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