terça-feira, 29 de novembro de 2005

A laicidade de 1911 foi o triunfo de uma religião


Algumas reflexões adicionais sobre a laicidade nascida em 1910. Uma ilusão de óptica muito comum na memória histórica portuguesa é pensar-se que a República trouxe a "modernidade" em termos de relação entre o Estado e a religião. Nada mais errado. Apesar de em Portugal, até 1910, o Estado ser confessional e minorias como a protestante serem toleradas, mas não poderem constituir-se como pessoas jurídicas, o essencial da separação (a liberdade de consciência, de culto público e de associação) já estava garantido desde pelo menos o reinado de D. Luís I. Não se fez uma lei explícita de liberdade religiosa porque essas minorias identificadas como "religiosas" eram ínfimas, pequeníssimas, microscópicas, e foram vítimas mais de esquecimento que de intolerância. As verdadeiras minorias religiosas no Portugal anterior a 1910 eram as das religiões seculares (as "religiões políticas" no dizer de Voegelin): o positivismo académico e os associativismos republicano e socialista, que eram constelações de clubes, jornais, tipografias, associações cívicas e até de centros escolares. Para esses, ninguém falava da necessidade de liberdade porque já era o que tinham desde a segunda metade do século XIX, ao ponto de terem consigo uma parte muito considerável da opinião pública. Ora, longe de ser a vitória de um Estado neutro em matéria religiosa e de uma igualdade de situação entre as confissões, a famosa "laicidade" triunfante em 1911 (na sequência da mudança de regime em 1910) foi a imposição da "religião cívica" do partido republicano ao conjunto da sociedade, com um controlo politico e administrativo sobre as restantes realidades (sobretudo a numericamente mais relevante, a Igreja Católica) muito mais pesado e intenso do que durante a monarquia constitucional foi alguma vez imposto a qualquer confissão, tanto a "oficial" (por sinal, bastante vigiada pelo poder civil a coberto da tradição regalista) ou quanto as "outras". Sobre isto, é aconselhável uma tese recentemente saída em Coimbra (orientada pelo grande especialista na matéria, Prof. Fernando Catroga), de Maria Lúcia Brito Moura ("A Guerra Religiosa da República", Editorial Notícias).

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