quarta-feira, 12 de maio de 2004

Será?

Via Liberdade de Expressão:

"O Bloguítica acha que não nos devemos meter na crise do Sudão porque esse é um problema dos sudaneses. Só que o Sudão não é uma democracia. O Bloguítica não percebeu que numa democracia mandam os respectivos cidadãos, e isso é perfeitamente legítimo. Chama-se auto-governo. A intervenção externa é que é ilegítima. Numa ditadura mandam os ditadores, e isso é ilegítimo, o que torna a intervenção externa legítima sob determinadas condições. "

"sob determinadas condições" creio, que já é o indício de que esta questão não é propriamente dada a regras absolutas.

Vamos a problemas diversos:

1. "Auto-governo" é mais a capacidade de preservar a soberania do regime, ainda que o regime possa ser uma democracia ou uma monarquia absoluta. Por exemplo, é conhecido a frase de que "é um ditador, mas é o nosso ditador".

2. "Democracia" e "auto-governo" também não são sinónimos, pelo menos para um liberal, uma vez que "democracia" é o governo de todos pela maioria, uma espécie de rotatividade de um ditador "light" consensual para uma parte da população.

3. Muitas não-democracias não são propriamente ilegítimas, ou pelo menos, não o são percepcionadas pelos próprios, sendo mais outros, a quem o assunto não diz respeito, que assim o consideram. Por exemplo, a monarquia absoluta do Dubai não é considerada pelos seus habitantes como ilegítima, como antes, não se consideravam os monarcas ilegítimos (a não ser quando a população ou a nobreza achava que alguma regra ou tradição não foi observada).

4. Mesmo na presença de regimes não democráticos mais opressivos, as próprias populações rejeitam a possibilidade de intervenção externa. E quando existe apelos a intervenção, normalmente é de uma das partes que está em conflito, o qual que está muitas vezes enraizado em razões históricas complexas (Balcãs), e quando não, na sua origem está uma intervenção externa anterior que despoletou consequências imprevistas, agravando ainda mais uma situação em particular.

5. Em muitos zonas do mundo, a instituição do moderno Estado centralizado não consegue estabelecer-se. O que existe, são tentativas, muitas vezes, de um grupo ou tribo predominante, com maior agressividade, a impor tal instituição a todo o território cujos limites foram definidos num qualquer Status Quo internacional (saído da Grande Guerra ou da Segunda Guerra Mundial, etc), e sendo um excesso chamar-lhe país ou nação (o próprio Iraque, por exemplo).

6. Muitas zonas/países, estão em conflito permanente interno, devido às tensões de conflitos de interesse que a própria tentativa de criar uma democracia ou governo único numa população não homogénea levanta. Porque nestes casos, importa muito saber, quem é o grupo maioritário que vai tomar conta da estrutura do Estado (será judeu, palestiniano, cristão, muçulmano, tutsti?) e impor a sua vontade "democrática" sobre a outra.

7. Mesmo quando se consegue (mas será mesmo?) percorrer algumas condições que possam dar um maior fundamento a uma intervenção externa, existe a questão importante quanto à utilidade no médio e longo prazo, e a história está cheia de escombros de tentativas de acelerar o normal desenvolvimento social através de engenharia social.

8. E mesmo que possa funcionar (afirmação que deve conter em si um forte pessimismo), temos de estudar em que se baseia a legitimidade de quem intervém, ou seja, a legitimidade de um centro de poder mesmo que num sistema democrático, em fazer a sua própria população incorrer em elevados custos financeiros e humanos, nessa intervenção. É demasiado fácil dizer que um governo eleito por 4 ou 5 anos e com maioria de 51% num parlamento, legitima qualquer decisão do primeiro ministro ou presidente do momento, em usar as tropas e orçamento, numa qualquer aventura mesmo que pelas melhores intenções de "fazer o bem" num qualquer ponto de mundo.

As democracias, recorde-se, em especial os regimes republicanos, surgiram com uma bandeira que era, impedir os monarcas de "fazerem guerras como quem pratica um desporto" (o que era mentira, as guerras das repúblicas inauguraram sim foi a morte de civis em massa por ideias, pela raça, etc).

É portanto de esperar que a legitimidade dos actos de guerra devem ser medidos em primeiro pela necessidade da legitima defesa e em outros casos pela presunção de grande consenso ou adesão quanto a outro tipo de intervenções militares. Mas mesmo quando existe consenso, quantas vezes factores como a informação em que se baseia tal consenso é precária (na Primeira Guerra, foram as falsas notícas de atrocidades dos alemães na Bélgica, no Golfo I de atrocidades em maternidades, no Golfo II as ADM, no Vietname o medo do dominó comunista e o causa bellis fabricado do "Tolkien Gulf", etc.)

A prudência só pode aconselhar pessimismo. Sabemos que defender a soberania territorial é legitimo e tem sempre a adesão da população. Tudo o resto levanta muitas dúvidas quanto à eficácia e mesmo quanto à legitimidade.

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