quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

A dissolução da ameaça misteriosa (I)

Há quatro meses, quando empossou o actual governo, o presidente Sampaio elaborou uma explicação constitucionalmente exemplar dessa decisão. A dissolução da Assembleia da República, que o Palácio de Belém anunciou esta semana, de forma a pôr fim ao actual governo, dificilmente poderá basear-se em argumentos tão sólidos (pelo menos, do ponto de vista constitucional, que é o que me interessa). Não nego que o presidente tenha capacidade constitucional e “legitimidade” para dissolver agora o parlamento. É indiscutível que tem ambas as coisas. É também indiscutível para mim que o presidente não deve ser atacado por esta sua decisão, por muito que se discorde dela. Fez uso daquilo a que na boa doutrina se chama prerrogativa e, se aceitamos que esta exista (como eu aceito), não há lugar a ataques. God save the President… (como legalista que sou, no máximo serei parte da sua loyal opposition).

Mas o que aconteceu nestes quatro meses para se chegar à dissolução? Para lá de algumas gaffes de membros do governo, da guerra que alguns membros do PSD fizeram e fazem a Santana Lopes e das declarações de respectáveis has been do nosso mundo político, o que aconteceu de extraordinário, de perigoso, no País? Há realmente uma ameaça, nas palavras da Constituição, ao “regular funcionamento das instituições” do Estado? Será que descobrimos agora que Portugal nunca teve um governo gaffeur, um partido no poder com vozes descontentes e contrariadas e declarações de “senadores” a dizerem que no tempo deles é que era bom? E que a ausência de tudo isso no passado torna este governo particularmente impróprio para os nossos hábitos políticos?

Estas questões não são pouco importantes quando existe no parlamento agora dissolvido uma maioria que apoia o actual governo e quando o líder do maior partido da coligação foi recentemente a votos num congresso do seu partido e, apesar de algumas vozes discordantes que não passaram aos actos, ganhou esmagadoramente o apoio dos militantes para prosseguir no rumo actual até ao fim da legislatura. Que me lembre, uma dissolução nestes termos só aconteceu em 1983, mas era então claro que a coligação dessa época estava mais dividida e o governo num estado parecido com o de Guterres em 2002 (isto é, mortinho por ser dispensado da pesadíssima tarefa de continuar em funções). Por mais impróprio que a oposição de esquerda (partidos e personalidades) e as vozes discordantes do PSD achem o actual governo, a verdade é que tanto este como os grupos parlamentares que o apoiam estavam decididos em prosseguir até ao fim da legislatura.

O precedente assim criado com a decisão presidencial desta semana é preocupante. No imediato, pode dar a ideia que o Presidente estava à procura de pretextos para tomar a decisão que apenas a consciência o impediu de tomar há quatro meses. Para a posteridade, o que é mais grave, pode ficar precisamente legitimada a deriva plebiscitária que Sampaio dizia há quatro meses dever-se evitar a todo o custo. Ou então, pode ser que exista alguma ameaça real ao “regular funcionamento das instituições” que ainda não seja do conhecimento público.

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