I. Uma certa direita estabelece como fronteira que a separa da esquerda a perspectiva optimista ou pessimista sobre a existência humana.
Segundo este ponto de vista, que resulta invariavelmente de uma leitura aligeirada de Hobbes e de Maquiavel, a natureza humana é perversa e conduz à destruição das regras mínimas de convivência social, caso não seja submetida a um poder soberano forte e autoritário. A direita deveria, assim, pugnar por um Estado soberano, forte, sustentado no carisma de um chefe e numa elite de dirigentes platonicamente devotos ao interesse nacional. Trata-se, como é óbvio, de uma recorrência vulgar, que a lança em equívocos de toda a espécie e, por conseguinte, deverá ser um critério a evitar.
Filosoficamente, na senda de Unamuno, a direita tradicional realça a «dimensão trágica da vida», porque para o homem consciente ela é efémera e fugaz: «Um homem que não é daqui, nem dali, nem desta época nem de outra, que não tem sexo ou pátria ou ideias, não é um homem», escrevia o poeta espanhol, para quem o homem concreto e não o homem abstracto deve ser a essência da filosofia e da política. Contudo, desta lição libertária de Unamuno, a direita tradicional apenas retém a «dimensão trágica da vida», em vez de perceber que ela sustenta a necessidade de preservar o homem concreto, o indivíduo, os seus direitos e a sua liberdade. Ao contrário, ela supõe que a consequência dessa tomada de consciência será, na hipótese conservadora, deixar o destino ao governo de Deus na terra, por via daqueles que cumpras os seus desígnios, e, na via revolucionária, fazer da vida uma luta diária e permanente da imposição da vontade contra a fraqueza da humanidade e do destino, protagonizada pelo herói de Évola que se queda «de pé entre as ruínas» do mundo.
II. Estas duas tradições da direita assentam, de facto, num pessimismo antropológico e têm-na marcado muito na Europa continental da modernidade pós-Revolução Francesa.
Daqui, facilmente se chega ao pessimismo antropológico-político de Hobbes, que, descrente de uma natureza humana condicionada pelas necessidades mais básicas, a vê caminhar para a destruição, na inexistência de uma autoridade superior que lhe condicione e oriente discricionariamente a existência. Se a natureza humana, em Hobbes, é naturalmente conflitual, ela terá de ser superiormente domada.
No século XX, a direita europeia julgou beber na Etologia de Konrad Lorenz os fundamentos científicos para a malvadez humana e aqueles que se ficaram pelo título da sua obra mais divulgada - A Agressão, uma História Natural do Mal, acharam mesmo que, finalmente, a ciência tinha descoberto os fundamentos para a proclamação de um Estado forte, dominador, que domesticasse a fera humana: perante tanta e tamanha maldade do género humano, como cuidar dele, dos «homens concretos» de Unamuno, dos «lupi» de Hobbes, senão com o «Príncipe» de Maquiavel, a quem mais valia ser temido do que amado, não fossem os súbitos perversos aperceberem-se da sua fragilidade de sentimentos e perderem-lhe o temor reverencial que, na verdade, constitui a legitimidade de qualquer governo? Alain de Benoist rejubilou e, «nova direita» que sempre fora, na verdade, uma direita velha, reencontrou o seu caminho da «modernidade».
Não foi por acaso que esta direita fez do liberalismo o seu inimigo principal. Segundo ela, tal como a esquerda, também o liberalismo é naturalmente optimista, porque confia em algo que não existe - o mercado ou a mão invisível - para manter uma ordem social espontânea, ela também, por sua vez, inexistente. Por esta razão, para a direita portuguesa o liberalismo será politicamente irrealista e ideologicamente de esquerda. Com estas duas supremas «verdades» sobre o liberalismo, e mais algumas como o jacobinismo e o anti-clericalismo revolucionário, a nossa direita quase sempre se distanciou do liberalismo, arrumando-o numa prateleira de inutilidades ou de ideologias inconvenientes.
De facto, em Portugal, a direita tradicional e, não raras vezes, católica, ainda não conseguiu perceber como a «Nouvelle École» pagã e ateia a influenciou.
III. Mas é, também, possível fazer uma leitura liberal de Maquiavel, da sua obra e do seu reafirmado pessimismo. Ou retirar consequências liberais da antropologia hobbesiana.
Como refere Murray Rothbard no primeiro volume do seu An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, «Maquiavel priva a política da sua máscara de virtude e na sua visão o estado surge como uma força brutal sem adornos e ao serviço do poder puro e nada mais» (nossa tradução).
Na verdade, Nicolau Maquiavel dedicou toda a sua obra à análise do poder. Nessa tarefa tentou ser asséptico, isto é, limitou-se a descrever as coisas como elas são e não como poderiam ou deveriam ser.
Por isso, quer O Príncipe, quer os Discorsi são manuais práticos sobre o exercício do poder. O que os distingue, então? Muito provavelmente porque no primeiro desses livros Maquiavel dá conselhos a quem exerce o poder, enquanto que no segundo dá-os, sobretudo, aos que dele são destinatários. Daí, neste último caso, o paralelismo recorrente com a época da República Romana, paradigma renascentista do governo equilibrado e sensato, onde as magistraturas dividiriam funcionalmente a soberania que, mais tarde, seria reconduzida à unidade do da Coroa e do Príncipe. Obviamente, que, do ponto de vista liberal, agrada ler nos Discorsi que «aqueles que agiram com maior tino ao fundar um Estado, incluíram entre as suas instituições essenciais a salvaguarda da liberdade». Mas é lá também que se pode ler que «é necessário que um só homem imprima a forma e o espírito do qual depende a organização do Estado», ou, pior ainda, que «o legislador sábio (?) não poupará esforços para reter em suas mãos toda a autoridade».
Contudo e retomando Rothbard, a grande lição libertária de Maquiavel terá sido desmascarar o poder. Até ele, o exercício do governo era teoricamente entregue a príncipes virtuosos, chefes piedosos e, no fim de contas, preocupados com o bem comum das sociedades a quem faziam o imenso favor de cuidar. Esta era, ao seu tempo, a forma tradicional de legitimar o exercício da autoridade de quem governava de inspiração obviamente cristã, fosse ela herdeira do platonismo agostiniano, ou do aristotelismo aquiniano: em todos os casos, fossem sábios ou homens comuns, a mão de Deus legitimava o governo dos homens e dava-lhe uma dimensão sobre-humana, necessariamente piedosa e inspirada nos desígnios divinos.
Ora, se é uma banalidade dizer que Maquiavel rompe com a divinização do exercício do poder, trazendo-o para o bem pouco prosaico mundo da avareza, da cobiça e dos baixos interesses dos homens, já talvez o não seja afirmar que, ao caracterizá-lo assim, Maquiavel adverte os homens e as sociedades para o perigo em que o poder se pode transformar. A virtú dos homens de Estado, a partir de Maquiavel, já não consiste no talento para o cargo que decorre da inspiração divina, mas já, apenas e só, da ambição pura e dura de aceder ao comando dos homens, para satisfação de interesses mesquinhos e egoístas. O «bom príncipe» não é, assim, o príncipe bom, mas aquele que souber manejar todos os meios ao seu alcance para conquistar e manter o governo nas suas mãos. Esse é, para Maquiavel e ao contrário dos seus antecessores, o verdadeiro conceito de virtú. O liberalismo ficou a dever-lhe imenso, como Rothbard lembra.
É por saber que os homens não «são naturalmente bons» que os liberais propõem que o Estado tenha as suas funções limitadas e os seus poderes refreados ao máximo limite possível. Fá-lo porque não ignora que o mau exercício do governo é bem mais provável que o bom e que o poder do Estado coloca nas mãos dos seus titulares um poder de dimensões absurdas que, como lembrou Maquiavel, é invariavelmente usado para a prossecução de interesses e vaidades próprias.
IV. Por outro lado, ao reconhecer a finitude e a precariedade da existência humana e a dimensão trágica que isso comporta na vida de cada indivíduo, o liberalismo retira um primeiro postulado: que os seres humanos devem conduzir as suas precárias existências dentro do princípio da máxima liberdade possível, isto é, que não tenham entraves ao desenvolvimento das suas vidas senão os ditados pela própria liberdade alheia.
Mas, sabendo também que a alma humana não tende naturalmente para a filantropia, acredita que a o princípio elementar das relações humanas, onde não existam intermediários ou terceiros sem interesse directo, é o da cooperação em vista a fins benéficos comuns. Por isso, quanto menos intermediários existirem, sendo que o Estado mais não é do que um deles com interesses próprios a agir em causa alheia, melhor poderão compor os seus interesses e obter resultados de soma tendencialmente mais positiva para as partes. Isto é, ninguém melhor do que os próprios indivíduos para comporem e equilibrarem com justiça os seus legítimos interesses. Como sabe, também, que ao instalarem-se no poder, os homens agem preferencialmente para conservarem e, se possível, ampliarem, as suas prerrogativas e os seus privilégios de soberania, bem como os daqueles que os ajudaram a atingir o poder.
V. Por estas razões e por muitas outras mais, o liberalismo quer um Estado mínimo, dotado de poderes reduzidos, ocupado por cidadãos que sejam controlados nos seus comportamentos e acções públicas. Se o liberalismo prefere o mercado ao Estado, a decisão individual à escolha pública e a mão invisível às muitas mãos bem visíveis do governo, não é por ser uma filosofia antropologicamente optimista e idiota. É, pelo contrário, porque nos diagnosticou devidamente enquanto homens, e porque não tem ilusões sobre a nossa identidade antropológica. Porque, como Maquiavel ensinou, sabe que não existem anjos alados entre os homens e aqueles que os governam. Muitas vezes, ainda que genuinamente convencidos de estarem a defender o «interesse público», cometem-se verdadeiras atrocidades sobre os interesses privados, aqueles que pertencem às pessoas concretas de que Unamuno nos falava e que, em última análise, têm direito à sua própria felicidade. De algum modo, a história e os resultados do Estado Social, contra o qual sempre o liberalismo se manifestou, é o resultado preciso desse equívoco, que o povo sintetiza magnificamente na máxima de que «cheio de boas intenções, está o inferno cheio».
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