domingo, 4 de dezembro de 2005

Laicismo, orçamento e escola pública

Publico aqui uma mensagem enviada a 3 de Setembro de 2003 a Ricardo Alves, salvo erro um dos animadores da Associação República e Laicidade. Na altura não obteve resposta, mas os meus argumentos, modéstia à parte, parecem-me ainda actuais:

Caro Ricardo Alves, Começo desde já por lhe agradecer a resposta. O tempo para mim também não abunda, mas arranja-se sempre um bocado para aquilo que nos interessa. Eu percebo perfeitamente a diferença entre ateísmo e laicismo. Mas o que você não pode iludir é a evidente desconfiança em relação às Igrejas e entidades religiosas que se nota nas suas palavras e nas do vosso site: é um parti pris vosso. E o que eu sou levado a concluir é que, por detrás dessa atitude, está um antagonismo em relação à religião (ou às religiões tradicionais). Isto porque vocês parecem não se preocupar igualmente com outras entidades que recebem favores do Estado: vivemos numa sociedade na qual não há cão nem gato que não mendigue benesses e subsídios ao Estado (parasitas profissionais, artistas, empresários, sindicalistas e o diabo a sete) e parece que só a Igreja Católica (ou outras Igrejas e grupos religiosos) devem ser excluídos do "festim". Repare que eu, quanto a essa questão, sou muito radical: sou um fervoroso adepto da concepção liberal do "Estado mínimo" e, por conseguinte, reprovo toda e qualquer utilização da máquina fiscal do Estado para subsidiar seja o que for. A diferença é que não faço distinções entre padres, empresários, partidos políticos, sindicatos, etc. Se me perguntar se sou a favor dos privilégios concordatários da Igreja Católica, digo-lhe que não. Se me perguntar se, então, apoio a revogação da Concordata, dar-lhe-ei uma resposta mais complicada: apoio, claro, mas também apoio um milhão de outras coisas para mim similares e que também me vão à carteira e que também julgo serem prepotências do Estado sobre mim a favor de grupos específicos (alguns exemplos, completamente ao acaso: subsídios a agricultores, currículos escolares únicos e obrigatórios, impostos escandalosos sobre coisas que me pertencem, etc.). É, pois, perfeitamente legítimo criticar os privilégios da Igreja Católica (é até saudável); o que me espanta é que não se veja a floresta à volta! E os outros todos?! A minha tese é que hoje em Portugal (e em todo o lado...) se estabeleceu aquilo que Frédéric Bastiat deu como definição do Estado: a grande abstração através da qual cada um tenta viver à custa de todos. Faz isso quem tem influência suficiente: a Igreja Católica tem, como têm muitos outros. Os argumentos "laicistas" da actualidade, quando vão por este caminho das "benesses do Estado", parecem-me navegar sempre neste equívoco, neste querer ver apenas um milímetro do quilómetro. Há, depois, outro problema muito complicado: o do lugar da religião. É aqui que o laicismo doutrinário navega, desde o século XIX, em águas muito turvas. Querem vocês reduzir a religião ao foro privado. Então o que deve ser público? O que é o "público"? Esse tipo de argumentos conduziram em 1910 à proibição das procissões ou do uso das vestes eclesiásticas dos padres fora das igrejas. É a isto que você quer voltar? Qualquer grupo pode solicitar (e bem) às autoridades o uso da via pública para se manifestar, menos os crentes de uma Igreja? Qualquer punk pode exibir em público as suas vestimentas excêntricas (e bem), menos um padre? Quanto à presença da religião no ensino estatal (dito "público"), dizem os laicistas que é um abuso. Talvez seja. Mas não será também um abuso ministrar-se aos alunos, indiscriminadamente, um conjunto de disciplinas que nalguns casos só são obrigatórias porque há uma política implícita de dar emprego a licenciados independentemente dos interesses dos alunos e preferências das famílias? O problema, aliás, resolver-se-ia por si mesmo se o Estado não se metesse num assunto onde é muito perigoso andar metido: a Educação. O que você não pode é ter um Estado que obriga todos os cidadãos a financiarem compulsivamente uma rede estatal de escolas e depois dizer a esses cidadãos que as religiões (que uma grande parte deles professa) não têm lugar lá! Porquê? Para si pode ser mais importante que as crianças estudem os currículos de História ou de Ciências Naturais decretados por um burocrata do Ministério da Educação do que os versículos da Bíblia ou do Corão; mas para muita gente não é. E, então, das três uma: ou você impõe o seu ponto de vista aos outros, ou a Escola Pública tem de comportar a pluralidade de crenças da sociedade onde está inserida, ou deixa de haver Escola Pública e cada um ensina os filhos em escolas privadas do seu agrado (solução que eu prefiro). O que é inadmissível é termos uma rede escolar estatal que absorve quase todos os recursos que a sociedade tem para a educação (porque é financiada compulsivamente) e depois se nega a permitir a presença de uma coisa tão importante para muita gente como as suas crenças religiosas. (...)

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