quarta-feira, 22 de outubro de 2003
Uma vez homem de partido...
O discurso de ontem do presidente da república deixou-me ainda mais preocupado do que já estava com o chamado "caso Casa Pia". O presidente estava visivelmente irritado com a revelação recente de novas partes das famosas escutas telefónicas feitas a dirigentes do PS (nas quais o seu nome aparecia) e sentiu-se obrigado a negar que nunca obstruiu a Justiça. Diz um ditado que quando a generosidade é muita o povo desconfia... Havia algum sentimento generalizado de que fosse necessário o presidente explicar-se? Não havia até algum consenso de que demasiada gente falava mais do que devia? Então, porque veio o presidente falar ao país sobre aquele assunto (basicamente passando um "raspanete" aos jornalistas, que supostamente nos impingem este caso, e à opinião pública, que se interessa morbidamente pelo mesmo caso)? Será que o presidente se irritou e não se conteve por ser referido nas conversas escutadas como alguém a quem os dirigentes do PS pensaram recorrer para travar a acusação de que um dos seus iria ser alvo? Mas, então, não deveria o presidente dar mostras de dignidade e recato e abster-se de se envolver (sobretudo com tanta rapidez) numa suspeição (de "favores políticos") que só envolvia e só poderia envolver até agora os dirigentes do PS? A propósito disto, vêm também as menções do presidente às violações do segredo de justiça, que rotulou de "criminosas" mas que ligou apenas aos jornalistas. O presidente "esqueceu-se", estranhamente, que as violações do segredo de justiça têm sido perpetradas também pelos advogados de defesa e pela direcção do PS (que é público que conhecia as intenções do ministério público contra Paulo Pedroso dois meses antes da prisão preventiva e propôs João Pedroso para o conselho superior de magistratura um mês antes da mesma prisão). Neste último caso, a violação do segredo de justiça parece-me bem mais grave, mas o presidente não se lhe referiu... O que concluo daqui é que dificilmente se pode eleger um homem de partido para a chefia do Estado e esperar que as solidariedades em que ele politicamente se fez desapareçam assim que entra no palácio de Belém; não é que a pessoa em causa não seja séria e até bem intencionada, é que a independência suprapartidária que nunca teve não lhe pode surgir do nada (é humano que assim seja, mesmo que só em discursos e sem actos condenáveis conhecidos ou não). Os liberais do século XIX, que em geral preferiram conservar a instituição dinástica na chefia do Estado, não andavam propriamente distraídos nem deixavam de imaginar os embaraços de um sistema como o actual...
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