domingo, 8 de janeiro de 2006

Ainda o protestantismo e o capitalismo...


Num comentário a um post meu recente sobre Max Weber e a relação entre o "capitalismo" e o protestantismo, o João Noronha aconselhou a leitura deste interessante texto de Michael Novak. Não deixa de ser curioso que Novak seja prudente na apreciação que faz da tese de Weber, lembrando aos críticos apressados que a criação de um ambiente favorável ao "capitalismo" nos meios protestantes se deveu mais aos desenvolvimentos da teologia moral levados a cabo por autores e pregadores populares (como Baxter ou John Wesley) do que às ideias directas de Calvino. Aliás, há a esclarecer que Calvino e "calvinistas" estão ligados, mas não são a mesma coisa. A generalidade do protestantismo anglo-americano está ancorado teologicamente em Calvino, mas desenvolveu-se muito para lá de Calvino. A teologia moral dos séculos XVII E XVIII, a que R. H. Tawney no seu livro clássico ("Religion and the Rise of Capitalism") também dá suma importância, teve um papel fulcral e deve ser o verdadeiro objecto de estudo deste fenómeno.

Voltando ao texto de Novak, propõe aí o autor uma distinção entre o "dinamismo" do protestantismo e a "criatividade" do catolicismo. Sinceramente, julgo tratar-se de uma proposta redutora. Não nego criatividade nem dinamismo ao catolicismo, mas é difícil aceitar que o protestantismo seja considerado pouco criativo. A própria teologia moral popular que se formou no ambiente anglo-americano - e que fez da sua cultura em grande medida o que ela é até hoje - é uma prova esmagadora dessa criatividade protestante. O próprio dinamismo com que Novak qualifica o protestantismo é inseparável da criatividade, tanto a nível individual quanto de grupos. O dinamismo protestante conduziu a uma explosão de grupos diferenciados, o que requereu (e requer) muita criatividade doutrinal, ao ponto de alguns deles terem pisado o risco da ortodoxia. Em termos da acção dos homens, incluindo o mundo do trabalho e do empreendedorismo, este dinamismo só podia alimentar-se de criatividade, como as sociedades anglo-americanas me parecem demonstrar desde o século XVII.

Para terminar, volto ao ponto do meu post inicial: a importância da CISSIPARIDADE protestante para a criação de um forte pluralismo e de uma forte sociedade civil. Trata-se de um ponto muito negligenciado neste debate, mas que eu julgo fundamental, inclusivamente para perceber as ligações históricas do protestantismo com o "capitalismo" (ou a livre iniciativa e a livre concorrência). De facto, a experiência protestante inspirada pelo calvinismo conduziu a uma fragmentação crescente das sociabilidades religiosas e criou (sem que essa fosse a intenção dos reformadores do século XVI) uma pluralidade efectiva de igrejas e grupos com doutrinas e modelos institucionais concorrentes. Essa realidade criou conflitos, mas acabou por forçar as sociedades mais fragmentadas à aceitação de uma fórmula política e civil de tolerância e convívio como condição da sua própria pacificação (vide todo o século XVII inglês até à "glorious revolution" com o seu Acto de Tolerância). Pela mesma razão, aquando da sua independência, os E.U.A. não podiam estabelecer outro modelo que não o da liberdade religiosa (com limites para os não protestantes) porque nenhum grupo era suficientemente forte para se fazer hegemónico com patrocínio político.

Recentemente, vários estudiosos do fenómeno religioso, adaptando para o efeito os métodos da teoria da escolha racional, têm chamado atenção para as consequências da concorrência em ambiente religioso (ver este livro, por exemplo). E mostram que a "desregulação" do universo religioso, como a que foi involuntariamente provocada pela cissiparidade prática do protestantismo sobretudo no mundo anglo-americano desde o século XVI, conduz(iu), pelo forte dinamismo e motivação dos grupos em concorrência, a uma explosão de criatividade geradora de pluralismo. Que isto se passou assim no mundo anglo-americano parece haver poucas dúvidas. E que isto não foi indiferente para a evolução da teologia moral que esses grupos reflectiram e para a evolução cultural dessas sociedades parece-me altamente provável. E trata-se de um campo de estudo pelo menos tão interessante quanto o exercício da descoberta de genealogias intelectuais das nossas ideias preferidas em autores que pretendemos naquelas integrar.

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