domingo, 15 de janeiro de 2006

Capitalismo e protestantismo: resposta a Patrícia Lança

Alguns apontamentos de resposta ao comentário de Patrícia Lança e à citação que faz de Hayek. Começando pela segunda, julgo que Hayek aqui está longe de avançar uma solução para este velho problema. Que as cidades comerciais italianas e holandesas já tinham práticas capitalistas antes de Calvino, ninguém duvida (nem o próprio Weber, que o escreveu, indo até mais longe e dizendo acertadamente que as práticas capitalistas já eram conhecidas no mundo antigo e persistiram até em civilizações “orientais” como a China e o Islão). O que ele queria saber era por que razão o capitalismo se tornara no Ocidente um fenómeno “massificado”. Isto não quer dizer que se tenha de concordar com a solução proposta por Weber, que parece realmente demasiado determinista nem sequer com a sua concepção de “capitalismo” que deixa muito a desejar. No entanto, estas dúvidas não devem servir tão-pouco de desculpa fácil para deitarmos fora o bebé com a água do banho.

Depois, do meu ponto de vista, Hayek contribuiu para lançar alguma confusão nesta questão ao misturar este problema (que é do âmbito da história das práticas económicas) com outro, que está inserido na história das ideias económicas. A descoberta das contribuições pioneiras dos escolásticos ibéricos para determinadas concepções em teoria económica não deve ser confundida com a história da emergência do “capitalismo” como fenómeno social e economicamente muito relevante a partir do século XVII. Porque as interacções entre os debates intelectuais e as práticas sociais e económicas são complexas e não tão automáticas (e esta é, precisamente, uma objecção válida que se pode fazer a Weber). Daí a importância da crítica que propôs a inversão do postulado de Weber, como no caso de Tawney, que argumentou, talvez mais persuasivamente, que o desenvolvimento das práticas capitalistas nas sociedades protestantes é que teriam conduzido ao aparecimento de concepções teológicas que as suportavam (como se tornou visível na teologia moral e nas pregações no espaço anglo-americano no século XVIII). No entanto, isto não resolve o problema de se saber a causa do desenvolvimento dessas práticas que “pediram” uma teologia que as suportasse.

A Patrícia avança com a hipótese das práticas mais democráticas nas sociedades influenciadas pelo calvinismo (mais propriamente pelo congregacionalismo presbiteriano e independente) terem sido a causa do desenvolvimento do capitalismo. Julgo que aqui vai ao encontro do que eu próprio defendi, ao considerar que um factor decisivo terá sido a pluralidade religiosa e de sociabilidades promovida pela cissiparidade protestante. Porque a questão, cara Patrícia, é responder a isto: mas porque se tornaram essas sociedades mais plurais, mais “democráticas”, e de que modo isso favoreceu o empreendedorismo dos indivíduos e das empresas? Alguma coisa se alterou nas práticas quotidianas e nas concepções das pessoas comuns para essas transformações ocorrerem. Weber tem uma proposta estruturada e com muitas falhas, mas que dá que pensar. O que não é uma atitude científica é rejeitá-la apenas porque é imperfeita.

Como também não me parece correcto confundir este problema histórico (e historiográfico) com o da história da descoberta intelectual das concepções económicas mais favoráveis à explicação dos processos de mercado. Que os escolásticos ibéricos (re)descobriram muita coisa importante, é inegável; mas também parece evidente que essas descobertas foram um tanto ou quanto irrelevantes no surgimento e desenvolvimento prático das economias de mercado modernas. Eles já observavam no seu tempo fenómenos de “capitalismo” sobre os quais puderam reflectir. Mas não foi nas suas sociedades (tal como não foi na Áustria de Carl Menger) que essas práticas floresceram. Já disse antes, numa troca de ideias com o André Azevedo Alves, que me parece que o que ajudou os escolásticos (e depois Menger) nas suas descobertas intelectuais foi o facto de operarem no quadro da lógica aristotélica, que lhes possibilitou conceptualizarem rigorosamente o que observavam e articularem as suas reflexões num discurso muito depurado de preconceitos e falácias. E é nisto que se equivocam os panegíricos aos escolásticos ibéricos enquanto católicos porque eles não “acertaram” por terem a religião de Roma, mas porque se mantiveram agarrados às “Categorias” do Estagirita (e nem todos os clérigos intelectuais seguiam esta via aristotélica, como se sabe).

Os protestantes fizeram o seu caminho através da teologia moral “popular”, não propriamente depurada de aristotelismo, mas de qualquer grande elaboração filosófica. E dessa via saíram, com um discurso já “secularizado”, Hume, Smith e os autores da Currency School. Que por terem deficiências teóricas (sobretudo Smith) seria precipitado serem menorizados ou demonizados. Além de que eles estavam a responder, no seu meio e no seu espaço, a necessidades de interpretação decorrentes de práticas já estabelecidas e bastante difundidas, o que explica que se tenham tornado autores populares e capazes de uma influência intelectual imediata e local que não teve paralelo com os escolásticos ibéricos ou com o próprio Menger. E isso é o que continua por explicar.

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