terça-feira, 9 de janeiro de 2007

Alceu Garcia responde a Robert Locke

Indicado por um leitor, a quem desde já agradeço. Já agora um nota, o facto de ser interessante e mesmo necessário a discussão em torno do "estado da natureza" de Hobbes (tal como eu próprio o tenho feito), e da possibilidade e estabilidade de uma ordem legal policêntrica (coexistência de concorrência nos serviços de segurança e arbitragem), não torna o "libertarianism" (deste ramo) numa utopia da liberdade. Este é um tema que tem o seu espaço próprio e que envolve da forma mais interessante quer a ciência política, quer a filosofia do Direito e quer a Economia. Mas é apenas um tema entre muitos. No final, o programa liberal é sempre o mesmo: privatização de propriedade e actividades económicas e crescente descentralização político-administrativa.

A confusão clássica de Locke tal como o existe à esquerda é confundir comunitarismo com colectivismo. E propriedade comum com propriedade estatizada. Ou de uma forma mais alargada, de formas de Governo com Estado.

O neoconservadorismo é o socialismo da direita
por Alceu Garcia, advogado

No campo da filosofia social, tenho simpatia pelo liberalismo clássico, o (paleo) conservadorismo e o libertarianismo, também conhecido como anarco-capitalismo. Essas correntes, creio, são as que mais se aproximam da verdade sobre a natureza humana e o ordenamento social. É claro que há discordâncias entre elas e acompanhar os debates sobre os pontos divergentes é ocupação das mais instrutivas. A história é outra, entretanto, quando num dos pólos da discussão está um neoconservador. Atualmente em destaque nos Estados Unidos, o neoconservadorismo é uma doutrina que, tendo feito concessões ao coletivismo estatal em nome do combate ao comunismo, acabou se apaixonando pelo Estado e se tornando algo parecido com o inimigo de outrora, absorvendo dele até o estilo falacioso e sofístico de debater. O discurso neoconservador é puramente ideológico, uma vez que é impossível superar as contradições entre suas declarações de intenções abstratas e sua atuação política concreta. Esse é o caso do artigo “O marxismo da direita”, um ataque ao libertarianismo de Robert Locke, publicado no site Mídia Sem Máscara em 15/06.

Vejamos alguns argumentos articulados pelo autor:

1- Os libertários têm uma concepção patológica da liberdade, pois são usuários de drogas, sexualmente excêntricos, imorais e irresponsáveis.

Locke deveria apoiar essa afirmação com a prova empírica de que todos ou a maioria dos libertários são doidões e tarados, ou a demonstração teórica de que a doutrina libertária por si mesma conduz necessariamente a uma comunidade de doidões e tarados. Não fez uma coisa nem outra, logo seu argumento é falso. Na verdade, trata-se de um ataque ad hominem caracteristicamente desonesto. Os teóricos do libertarianismo, como Murray Rothbard, David Friedman, Gary North, Joseph Sobran, Walter Block e Hans-Hermann Hoppe são, e sempre foram, pessoas sérias e respeitadas, com sólidas carreiras como professores, escritores e jornalistas. Nenhum deles considera o consumo de drogas e a promiscuidade sexual como virtudes, muito pelo contrário. A questão de princípio que interessa aqui é investigar se incumbe ao Estado criminalizar condutas que não causam danos a terceiros, mas somente aos que as praticam. Os libertários argumentam que a coerção (estatal ou não) só é legítima quando usada em defesa da vida, propriedade e liberdade pessoais. Admitir o contrário implica em outorgar ao Estado poderes tirânicos, vez que não há atividade humana inofensiva que não possa ser criminalizada se esse for o desejo de quem estiver de posse do poder político. Comer fast-food faz mal à saúde, logo o fast-food deve ser proibido; confessar o catolicismo faz do crente um fanático, logo o catolicismo deve ser proscrito; possuir arma de fogo para auto-defesa é um risco social, logo o portador de armas deve ser encarcerado, e assim por diante.

2- Os libertários são ex-marxistas, logo tão equivocados e potencialmente perigosos quanto os marxistas.

Assertiva é falsa, visto que, nos EUA, a grande maioria dos libertários nunca foi marxista, e irrelevante, porque nada existe de errado, a princípio, em ser ex-marxista. Ao contrário, isso pode até ser visto como sinal de coragem moral, vez que não é fácil admitir para si mesmo e para o público que tudo o que se pensou e fez estava errado, e de maturidade intelectual, pois é preciso refletir e estudar bastante para se convencer cabalmente que o marxismo é uma corrente de idéias intrinsecamente falsa. O editor do Mídia Sem Máscara, Olavo de Carvalho, é ex-marxista e foi inclusive membro de carteirinha do partido comunista. Isso é razão para desqualificá-lo? Não creio. Ademais, a acusação sofística pode se voltar a fortiori contra os próprios neoconservadores, entre os quais houve e há efetivamente muitos ex-marxistas, como James Burnham, Frank Meyer, Ronald Radosh, David Horowitz e vários outros

3- O libertarianismo, por idolatrar o egoísmo, é o espelho do marxismo, que aposta tudo no altruísmo. A boa sociedade é aquela em que se mesclam coletivismo e individualismo.

Mais uma falsidade do articulista, porque o marxismo nada tem de altruísta. Para ele, as pessoas são escravas do interesse de sua classe, queiram ou não. Ou seja, todo mundo é egoísta, até os proletários, que só fazem a revolução porque seus interesses assim o exigem. Como todo coletivista, o autor oculta maliciosamente em seu raciocínio a premissa de que os agentes do Estado são necessariamente altruístas (ao menos se seguem as idéias preferidas do autor) e todo mundo que age na esfera não-estatal é necessariamente egoísta. A verdade é que não existe gente mais perigosamente egoísta do que os políticos, versados na arte de manejar o discurso do bem comum para camuflar a promoção de seus próprios interesses, apoiados pela força policial. A premissa verdadeira, adotada pelo pensamento político ocidental sério desde suas origens, é que os agentes estatais são egoístas e seu poder deve ser limitado e controlado de algum modo. Os libertários acrescentam apenas que não há modo efetivo de controle do Estado e que as funções estatais podem ser executadas com vantagem e com mais possibilidades de limitação do arbítrio em um arranjo social voluntário.

4- O libertarianismo, como o marxismo, é economicista, logo é falso por reduzir tudo ao econômico.

Marx bem que quis ser economicista, mas o fiasco da teoria do valor-trabalho e a subseqüente bancarrota do comunismo resultaram no colapso do marxismo como filosofia e como ciência. Já o libertarianismo dispõe de uma matriz teórica apta a uma correta compreensão dos fenômenos econômicos. Embora exista, sobretudo entre os liberais clássicos, quem queira fazer da eficiência econômica o critério supremo de moral e justiça, os libertários em geral não são assim. A teoria econômica realmente é muito utilizada para se compreender, por exemplo, os efeitos do protecionismo comercial, da inflação, da tributação, do controle de preços etc.. Uma vez que se entenda que o resultado de uma tarifa alfandegária, por exemplo, é obrigar os consumidores de um país a comprarem mais caro do fornecedor nacional o que poderiam comprar mais barato do fornecedor estrangeiro, deve-se então analisar a questão sob o ponto de vista moral. É justo que algumas pessoas, servindo-se da violência do governo, favorecerem outras pessoas (todos os envolvidos na produção da mercadoria nacional) em detrimento de outras (os consumidores)? É claro que não. A teoria econômica, portanto, é apenas uma ferramenta na construção de juízos morais (segundo os libertários, à luz das várias vertentes do Direito Natural) e, por outro lado, um importante recurso para a desmitificação das mentiras dos políticos.Assim, é preciso cuidado com a acusação de economicismo, que pode ser um desvio sofístico, um pretexto para fugir de críticas fundadas e procedentes. Para exemplificar: os neoconservadores têm asseverado que a importação de produtos baratos da China causa desemprego nos Estados Unidos, pelo que a limitação dessas importações é um dever do estado no zelo pelo bem comum. Isto é falso. O desemprego que possa haver nos setores americanos que competem com os importados chineses são compensados pela criação de empregos nas áreas envolvidas na exportação para a China, pois, abstraindo-se o dinheiro, o que paga as importações são as exportações. Um neoconservador dirá que essa crítica é economicista porque não tem como refutá-la.

5- O libertarianismo não é escolhido pela maioria, logo é uma doutrina política falsa.

O critério de veracidade de uma idéia, ou de um sistema de idéias, não é a opinião da maioria, e sim sua coerência interna e sua pertinência com a realidade que ela busca espelhar. Os libertários acreditam que a verdade e a razão têm força suficiente para triunfar no debate intelectual e político, e investem na persuasão ao longo do tempo. Na prática política, deve-se sempre escolher a alternativa menos estatista (i.e., a menos pior), sem deixar de denunciar o estatismo em geral. Se a maioria escolhe Hitler, Lula ou George W. Bush, tanto pior. O jeito é tentar esclarecer o público sobre como e porque as políticas desses tipos de liderança só podem conduzir ao desastre e tentar convencer as pessoas a escolher melhor da próxima vez.

6- A idéia libertária de desestatizar a moeda equivale a entregar o dinheiro aos bancos privados e gerar grandes crises como as do passado, superadas com vantagem pelo gerenciamento monetário estatal.

Este é o clássico argumento keynesiano para a estatização do dinheiro. Keynes foi outrora a bête-noire dos (paleo) conservadores , mas os neoconservadores prestam culto ao pernicioso economista inglês sem problemas de consciência. A moeda emergiu das trocas voluntárias de mercado, que adotou espontaneamente o ouro e a prata como as melhores. Os bancos privados só causaram problemas quando criavam depósitos e emitiam notas sem a devida cobertura de moeda-ouro (ou seja, quando inflacionavam), o que sempre fizeram com a cobertura e o estímulo do Estado. A politização da moeda resultou, desde os anos 30, em inflação, com a desvalorização de quase cem por cento do dólar (na época do padrão-ouro seu valor se mantinha constante), além do que o governo americano pôde contrair a atual dívida de oito trilhões de dólares (fora esqueletos não contabilizados). Nem vale a pena lembrar do que ocorreu nessa área em países como o Brasil. Em suma, o que os neoconservadores proclamam como virtude é nada menos que o roubo sistematizado e em vasta escala, pois inflação e endividamento estatal não são mais do que isso. Belo exemplo de coerência moral!

7- O Japão é rico com uma economia regulamentada e a Rússia é pobre com uma economia desregulamentada, logo o laissez-faire libertário é falso.O Japão é rico apesar de seu excesso de regulamentação, não por causa dele. Se feixes incompreensíveis e contraditórios de milhões de decretos estatais arbitrários e absurdos fossem requisito de progresso material, o Brasil seria um dos países mais ricos do mundo. Quanto à Rússia, custa crer que alguém possa afirmar de cara limpa que um país onde nem o direito de propriedade tem previsão legal e o arcabouço legislativo comunista continua intacto tenha uma economia desregulamentada!

8- Ao contrário do que sustentam os libertários, a verdadeira liberdade exige que a “sociedade” imponha coercitivamente regras morais ao “povo”.

O que Locke está dizendo em linguagem ideologicamente cifrada é que alguns indivíduos de quem ele gosta podem e devem conquistar e usar o monopólio da violência (o Estado) para impor pela força o que bem entendem aos demais indivíduos. É simples assim. A verdade é que a moral não pode ser criada nem imposta pelo Estado, que no máximo pode se encarregar da defesa dos direitos pessoais contra agressões injustas, como queriam os fundadores da república norte-americana. A própria idéia neoconservadora de fazer uma engenharia social ética por decreto do governo é imoral em si mesma, e sintoma de degeneração moral da sociedade que considera seriamente um projeto insensato como esse.Publicado em 30/06/2005

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