segunda-feira, 8 de março de 2004

Bens públicos

Parece que os economistas foram buscar ao Direito o conceito de "bem público", no qual este dizia respeito mais a situações de facto (terras comunitárias ou rios usados comunitariamente p.e.) do que propriamente a um princípio abstractamente defensável.

As coisas complicaram-se quando se confundiu essa situação "pública" de determinados bens com as funções do Estado para as quais pendia a tradição justiniana do Direito romano tardio - é daí que vem uma propensão maligna do nosso raciocínio segundo a qual tudo o que não é obviamente privado (de "papel passado") pertence ao Estado e à sua pretensa função permanente de "salus populi".

É evidente que os "bens púbicos" existentes eram "públicos" até certo ponto porque era determinada comunidade ou conjunto de pessoas (normalmente muito restricta) que tinha um direito costumeiro de os usar, com direito de exclusão de terceiros - a característica "pública" não restricta dos actuais "bens públicos" é coisa recente e, parece-me, particularmente dependente de uma concepção colectivista da realidade que acompanhou a democratização dos sistemas políticos-jurídicos.

Enquanto a ideologia democrática não veio em auxílio dessa concepção estatizante (legitimando-a com a equação Estado=povo="interesse público"), foi possível chegar a esboçar outras vias de raciocínio e de ordem civil; assim, por exemplo, Locke preocupou-se em justificar a apropriação privada de bens onde não existe Estado ou propriedade de outrem.

Por outro lado, as concepções de juristas como Coke e Blackstone, que pretenderam sujeitar os governantes enquanto governantes ao Direito e as suas decisões aos tribunais (nos quais, em caso de litígio com privados, deveriam ser reduzidos a mera parte litigante), iam no sentido de assumir que a propriedade do "soberano" era detida de acordo com os mesmos princípios que a propriedade privada e que resultava da utilidade para o próprio "soberano" (e, claro, para as funções que desempenhava) e não de uma natureza "pública" que lhe fosse inerente e a diferenciasse da restante.

É evidente que a democratização das ordens políticas levou a uma completa confusão destes conceitos, impossibilitando a compreensão (pelo menos em termos jurídicos) dos bens detidos e geridos pelo Estado como bens privados entre outros bens privados - o que as pessoas instintivamente percebiam que se aplicava a um rei e ao seu poder "privado" dificilmente transferiram para um estado republicano que se apresenta como a própria abolição da distinção entre "soberano" e "súbditos".

Na cidadania republicana dissolveu-se sempre, conceptualmente e na prática política, a possibilidade de distinguir o Estado da sociedade e criaram-se figuras simbólicas como os "bens públicos" e os "serviços públicos".

No caso da procura e prestação destes serviços pelo Estado (a que os economistas, numa confusão conceptual que levanta problemas também chamam "bem público") passou-se isto: onde antes havia, pelo menos em termos de entendimento jurídico, uma relação essencialmente contratual entre o "súbdito" e o "soberano", passou a haver necessidades automáticas da parte dos "cidadãos" e acções colectivas auto-justificadas da organização política de que teoricamente se dotaram enquanto corpo político auto-organizado.

Daí que a Public Choice (que não tenho a pretensão de conhecer, perceba-se) aparentemente assuma, com um à-vontade pouco recomendável, que determinadas funções do Estado são "bens (ou serviços) públicos". É um pressuposto teórico a que a lógica não parece forçar e a que dificilmente a observação da realidade histórica nos limita. Neste caso, como noutros (eg. a "propriedade intelectual"), talvez fosse mais rigoroso assumir-se que determinados pressupostos (ou realidades) são aceites para tornar possível o debate (i.e. para que a argumentação não seja rejeitada em bloco pelo interlocutor, que rejeita à partida grande parte das ideias expostas).

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